quarta-feira, 18 de maio de 2016

VEMOS, OUVIMOS E LEMOS. NÃO PODEMOS IGNORAR


Como médica, senti-me ultrajada!
Federica Zamatto, médica coordenadora dos programas de migração da organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF)

Agora, tudo está mudado na ilha grega de Lesbos, que no ano passado viu mais de meio milhão de refugiados e migrantes darem seus primeiros passos em solo europeu. Durante o caos do verão passado, 15 mil pessoas ficaram retidas na ilha após as autoridades suspenderem os barcos para a ilha principal. Agora, tudo está limpo e arrumado, pronto para a época turística que está aí a chegar. Os acampamentos estruturados por voluntários e ONGs para oferecer abrigo temporário às famílias que chegavam à ilha estão completamente vazios. Os milhares de coletes laranjas que se espalhavam pela costa foram tirados de lá. As praias estão de volta ao normal. Mas, não se engane: Lesbos não está silenciosa e arrumada porque as pessoas pararam de fugir da guerra. Em vez disso, os homens, as mulheres e as crianças que arriscaram tudo em botes de borracha estão agora detidos atrás de grades, longe dos olhos europeus ou do outro lado da costa, num buraco negro.
A Europa decidiu varrer migrantes e requisitantes de asilo para debaixo do tapete, como se fossem lixo. A União Europeia (UE) está tentando esconder o problema e retirá-lo  das vistas. Mas são pessoas e não lixo. São homens de todas as idades, mulheres e crianças, que apostaram numa rota incerta para deixar para trás conflitos, instabilidade e pobreza, na medida em que os riscos da jornada compensam, se comparados à ameaça constante sob a qual viviam nos seus países de origem. A tinta do acordo vergonhoso entre a UE e a Turquia mal havia secado quando o acampamento improvisado de Moria foi transformado num centro de detenção. (…) Alguns dias atrás, eu visitei o centro e o que vi foi chocante: crianças mantidas em detenção, privadas da sua infância. Hoje, Moria está perigosamente superlotado e muitas pessoas estão dormindo ao relento, com nada mais do que lonas plásticas ou papelões para se protegerem da intempérie. (…) A coisa mais ultrajante que vi, no entanto, foram muitas, muitas crianças mantidas em detenção, deixadas em condições miseráveis e indecentes, sem alimentação adequada, ou até mesmo sem uma oportunidade de brincar, como todas as crianças normalmente fazem. Elas estavam por toda a parte, correndo, dormindo, embaladas nos seus carrinhos. Eu jamais poderia imaginar que crianças, mulheres grávidas, idosos, a maioria fugindo da guerra, seriam cercados por arame farpado, com os portões fechados, em solo europeu. E eu não consigo encontrar uma explicação aceitável para o porquê da Europa estar permitindo que isto aconteça. A Europa, que falhou em implementar o esquema de recolocação a partir de acampamentos improvisados para países europeus – mostrando que não havia verdadeiro consenso sobre as estratégias dos Estados-membros da UE – agora está tentando esconder o problema, afastando os refugiados e repassando as suas responsabilidades para a Turquia. Temo que os cidadãos europeus não saibam o tipo de acordo ultrajante que os seus Estados assinaram em seu nome. Se soubessem, sentiriam vergonha, nojo, ficariam furiosos e sentir-se-iam traídos, assim como eu. 


Como organização humanitária (MSF), recusamos-nos  a ficar apenas assistindo da praia.

Desde que o acordo entre a União Europeia e a Turquia entrou em vigor, no dia 20 de março, os espaços estruturados nas principais ilhas na Grécia em outubro de 2015 para a triagem e o registo de requisitantes de asilo foram transformados, da noite para o dia, em centros de detenção onde os migrantes estão retidos. A União Europeia (UE) viu no acordo com a Turquia um meio de conter a crise de migrantes e de refugiados. Desde esse dia qualquer um que  desembarque nas ilhas gregas, é levado directamente para campos em Lesbos, Chios, Leros e Samos, transformados em centros de detenção administrados pelo exército e pela polícia grega. 

A situação também é complicada noutros locais da Grécia. Até ao dia 28 de março, havia mais de 50 mil pessoas retidas em centros de detenção ou acampamentos. Cerca de 11 mil pessoas ainda estão em Idomeni, aguardando a abertura da fronteira com a Macedónia, mesmo que as autoridades tenham dito repetidas vezes que ela continuará fechada. 

“As coisas poderiam ter sido diferentes. Poderiam ter sido organizadas. O que vemos aqui é a falha total da União Europeia em receber um milhão de pessoas com dignidade e respeito. Um milhão não é um grande número para a Europa. E cada um desse milhão de pessoas tem sua história pessoal, seu sofrimento pessoal. Elas fizeram de tudo para se salvarem, a si mesmas e às suas famílias, e para buscar um futuro melhor na Europa, longe da guerra e da perseguição. Como todos nós, afinal, teríamos feito.”  - diz a directora-geral da organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) na Grécia.


“Refugiados e migrantes estão procurando uma vida melhor e mais segura. Não é admissível tratá-los como criminosos, ou pior, deixá-los morrer nessa procura. Em vez de se concentrar na dissuasão e na vigilância, os Estados europeus devem providenciar alternativas seguras para as travessias marítimas e um mecanismo de busca e resgate que seja ao mesmo tempo exclusivo e proativo. As vidas de centenas de milhares de pessoas dependem disso”.

“Enquanto as crises e os conflitos pelo mundo continuarem a levar milhões de pessoas a fugir, a falta de uma solução global para a actual crise de refugiados, a política de dissuasão dos Estados europeus e sua recusa em fornecer alternativas para a travessia marítima vão continuar a matar milhares. Como organização humanitária, recusamos-nos  a ficar apenas assistindo da praia.” (Médicos Sem Fronteiras)


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